Aventura de uma motorista de primeira viagem
Tudo começa quando a sua tia senta no
sofá e inicia uma animada conversa com sua mãe sobre os filhos de
uma outra amiga delas. Você, sentada no seu quarto estudando a tal
da constituição do estado, ouve resquícios sobre aulas de piano e
ridas. Quando você chega ao artigo 10 ouve algo que te preocupa: "A
Maíra pode ir lá para você, não, ela não se importa".
E aí vem a convocação:
- Maíra, você pode ir lá em Belo
Horizonte pegar os papéis para sua tia, ne?
Você pensa que tem um papel que diz
que você pode andar de carro por aí, mesmo que você ainda não
tenha percorrido um percurso tão longo...Pensa que é para aquela
mesma tia que mesmo antes de você ter um papel que autorizasse, ia
com você para a quadra treinar baliza e outras coisas... Seu cérebro
grita "Não, você não tá preparada". Só que seu coração
é mole e o que sai da sua boca é mais ou menos o seguinte:
- Claro tia, agora ou pode ser depois
do almoço?
E assim, às 14 horas, com os óculos
no rosto, e o papel que diz que você pode andar de carro por aí,
você toca a campainha, sua tia lhe entrega os documentos do carro e
abre o portão da garagem. Chegou a hora da verdade. O que você tem
que fazer mesmo? Daí você liga o carro, engata a primeira, dá
seta, e secretamente comemora "não preciso por a cabeça pra
fora". Mas a euforia passa rapidinho quando se lembra: "eu
nunca saí de garagem". Você olha para a medalha do São
Cristóvão no painel do carro e reza: "Pega minha mão, meu
santinho"; respira fundo e sai da garagem, buzina uma vez e vai
embora.
Dez minutos depois você deixa Lagoa
Santa sem nenhuma aventura, todos os sinais cooperaram, você lembrou
de dar seta, reduziu direitinho ao passar nos quebra molas... Agora
que começaria o desafio. Auto estrada! Hora de puxar o que o
instrutor falou: usa a pista do meio e mantenha a velocidade em 80km.
A pista está vazia, o carro segue tranquilo, você lembra de ligar o
rádio e canta junto com os hits americanos que vão tocando um a um
durante o percurso.
Ao entrar em Belo Horizonte as coisas
começam a esquentar: um ônibus na sua traseira. Olha o suor na sua
nuca. Ele te ultrapassa. Alívio. Onda de sinais fechados. "Senhor,
meu carro vai morrer." Você se preocupa tanto com o controle de
embreagem que o carro morre. Tem que colocar a primeira para
arrancar! Liga o carro e sai. Viaduto, trincheira, mais sinal, você
começa a se acalmar e aproveitar a "viagem". Quando
percebe já é hora de estacionar. Claro que você para um pouco
longe, mas lembra que não tem mais instrutor do seu lado para cobrar
os 50 cm de distância ideal. Desce do carro e vai em busca dos
papeis.
Na volta, o trânsito tá mais intenso,
seu carro morre em três sinais. Um motorista te olha feio, e as
músicas também já não estão agradando. Ainda bem que a MG-010 já
está se aproximando e você terá um pouco de paz. Você a pista e
quando assusta está quase a 100 km. Sua mãe surtaria nesse
momento. "Reduza!" manda seu cérebro, o que você obedece
prontamente.
Tudo ia muito bem, tudo estava muito
lindo mais eis que seja a hora de entrar de novo na garagem. Dessa
vez você tem um problema: não calcula bem a distância e olha o
retrovisor raspando na pilastra. Sua tia corre e encosta ele no vidro
mas o estrago já está feito. Uma área arranhada! Claro que veio o
consolo, mas você já sabe que vai chegar em casa e comprar um novo
retrovisor. Apesar dos pesares, entre mortos e feridos salvaram-se
todos, para a primeira viagem intermunicipal acha que foi até bem.
Que venham as próximas!
Aquilo quando se perde aquela coisa
No último agosto ela perdeu seu
emprego. Foi em uma tarde de sexta-feira, como sempre é, no final do
dia. Foi chamada em uma reunião e a mocinha do RH lhe deu a notícia.
A mocinha disse também que a sua chefe iria lhe dar mais detalhes.
Esta só lhe disse que achava que ela deveria brigar mais pelo seu
ponto de vista, que naquela nova equipe ela não conseguiu se
encaixar, não tinha o perfil para continuar lá. Meio desnorteada,
ela subiu, juntou suas coisas, disse rapidamente um adeus para os
colegas de trabalho e foi para rua. Não lembra ao certo como chegou
em casa, só lembra de muito choro e uma revolta que crescia cada vez
mais a cada lágrima derramada: Porque ela não abrira a alma e não
contara tudo que achava que realmente acontecia naquela equipe? Ah
sim, ela achava que não valeria a pena. Já não era mais tão
inocente assim para acreditar que poderia ajudar a iniciar uma
mudança para os colegas que ficaram por lá. Então não disse nada,
só assinou seus papeis e seguiu para casa.
Daí foi uma semana inteira sem saber o
que fazer. Não que ela já saiba. Ainda continua dois meses depois
sem ter a mínima noção do que fazer com a sua vida. Não sente nem
mesmo a liberdade de poder fazer qualquer coisa que sempre quis fazer
por que não houve "a coisa", ainda é qualquer coisa. E
assim, meio perdia ela segue. Procura emprego na mesma área, só que
no seu íntimo está insegura demais para encontrar. Sempre pensa no
que dirá para um provável entrevistador na hora da clássica pergunta: “Por que você saiu do último emprego?”. Pensa em
dizer só disseram que ela não se encaixava mais na equipe, já que
trocaram até mesmo a gerente. Pensa também em dizer que iria se
mudar para outro estado e concordaram em demiti-la. Mas ela quer
mesmo é dizer que ainda não entendeu o porque. Que sabe que
houveram falhas da parte dela bem como houveram falhas das outras
partes envolvidas. Pensa em dizer que não podem pedir a cabeça de
uma pessoa só pela qualidade de um software, ainda que esta pessoa
seja a tester envolvida. Pensa em dizer que desde de seu processo
seletivo lá as coisas foram tão estranhas que nada lá funcionou e
exemplificar que fez todo o processo para atuar em uma equipe e
entrou em outra. Pensa em contar que um software construído a 16
anos atrás não pode mesmo ser remendado sem que explodam mil
problemas. Quer também dizer que aprendeu que deve sempre exigir um
documento para cada "fulano disse que é assim" e um outro
para cada "essa versão tem que ir hoje" para lhe garantir
uma defesa, quer dizer que aprendeu que o Scrum continua sendo usado
para encobrir um processo de desenvolvimento de software em cascata.
Quer comentar que aprendeu a guardar evidências de que suas tarefas
foram executadas. Quer ressaltar que aprendeu que não adianta bater
o pé para quase nada mesmo quando lhe pediram para ser exigente,
pois um dos grandes vai dizer "isso sai desse jeito e depois a
gente arruma". Quer dizer que não vale a pena ficar mais nem um
minuto depois do expediente. Mas acima de tudo, que dizer que
aprendeu como uma empresa não deve funcionar. Só que ela ainda não
sabe se encontrará pessoas maduras o suficiente para ouvir todas as
suas conclusões.
Talvez bem lá no fundo de sua alma,
ela anseie por um novo destino, uma nova carreira... Mesmo que ela
não tenha mesmo a menor ideia de por onde iniciá-la. Mas a vida
segue, e querendo ou não, ela segue com a dela.
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